Compartilho quatro páginas de um registro de campo de 2018, com fotos de 2012. São belas paisagens e queridas relações de nossa convivência com as famílias e comunidades baniwa, no rio Içana, durante as pesquisas com escolas indígenas do noroeste amazônico pelo Ceunir-Feusp*.
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TUNUÍ CACHOEIRA 10/11/2018 (SÁBADO) 7h.
Uma chuva torrencial começou a cair pouco antes das 6h. Primeiro tamborilando sobre o nosso telhado de brasilite, enquanto clareava, e rapidamente virando uma enxurrada, conforme o dia terminou de nascer. Hesitei, mas afinal saí, segurando xampu e sabonete, para tomar banho de chuva em frente à casa, como se fosse criança em Belém.
O chuvão ajudou a resolver o primeiro banho do dia sem precisar descer ao rio. Também adiou o sino do mingau, dando mais tempo ao Antônio para dormir um pouco, a mim para escrever e organizar minhas tralhas (organizando assim os pensamentos), e ao Elie para fumar um cigarro antievangélico, observar da janela a cena estática da comunidade chuvarenta, e escrever também, em seu caderninho de brochura.
Na casa em frente, o Joelito (hoje capitão) já acordou. Todo mundo já deve ter acordado. Devem estar descendo para banhar no rio, discretamente como sempre, mesmo debaixo desta chuva.
Às 10h o professor Daniel veio à nossa porta. Não houve nem o toque do sino e nem o mingau comunitário às 7h, por causa da chuva. Mas Dani foi cedo avisar a equipe dos professores, um a um em suas casas, convidando para a reunião conosco.
Logo bateu ele mesmo o sino da escola, e nos juntamos na sala em que a professora Sílvia dá aula aos pequenos, aquela mesma de 2012. Agora ela está com o grupo só do 1º ano, que tem ao todo 13 crianças, e assim conseguiu formar uma turma separada (antes, o 1º ano funcionava junto com a educação infantil). Há cartazes e folhas de sulfite pregados na parede, embora menos que das outras vezes. Mostram os nomes das crianças e palavras em português — coco, sapato, pipoca.
Daniel tinha arrumado cadeiras em círculo e uma grande mesa ao centro, onde deixou expostas quatro ou cinco encadernações com trabalhos e pesquisas dos estudantes. Versavam sobre peixes, picada de cobra, frutas comestíveis da região.
Levamos um café da dona Elza pra compartilhar, e dois abacaxis que a Ana esposa do Felipe nos deu. Os professores chegaram aos poucos, mas vieram vários, e também os anciões Jonilson (que está como vice-capitão), Humberto, Marta, Cláudio, Zaqueu, Neemias e outros moradores. Conversamos por talvez duas horas sobre a situação e as demandas da Escola Máadzero, anotando à mão tudo que se dizia.
Voltamos para a nossa casinha, almoçamos granola e bolachas. Depois, me sentei do lado de fora, mais perto dos nossos anfitriões, interessada em ouvir de Joelito mais notícias. O capitão conta que o PEF prometeu eletricidade para janeiro.
De fato, na chegada ontem à tarde, quando o bote finalmente aportava na comunidade, contornando a cachoeira de Tunuí em direção ao grande remanso à direita, subitamente apareceu um exótico cabo de alta tensão cruzando o Içana nas alturas, sinalizado com aquelas esferas laranjas como bolas de basquete contra o céu azul, suspenso exatamente acima da portentosa corredeira. O cabo sai da outra margem, onde se localiza o 7º Pelotão Especial de Fronteira com seus geradores, e chega a Tunuí pela pontinha pedregosa da comunidade, ali detrás da cozinha de dona Letícia. Por enquanto, transporta só a promessa feita, mas nada da energia elétrica.
Depois de ouvir o capitão, fui à cozinha da dona Elza, no fundo da casa, onde comi peixe moqueado com ela e dona Martinha. Falamos da saúde: ambas com preocupações, mas fazendo exames no polo-base e tentando agendar outros na cidade. Uma de minhas amigas está com diabetes e hipertensão. Não pode beiju, farinha, arroz, macarrão. A outra tem uma hérnia: apontou o alto ventre na região do diafragma. Me mostrou os remédios que toma, aqueles que a filha estava tão preocupada em comprar e mandar conosco, mas não descobrimos o nome deles a tempo. Eram os corriqueiros ibuprofeno e nimesulida.
Agorinha à noite eu lhe dei as poucas cartelas de paracetamol e diclofenaco que trouxe comigo. Este você toma no lugar daquele, e este no lugar daquele outro. Não pode tomar este por mais de três dias seguidos. Eles ajudam na dor, mas precisa dos exames e do tratamento para resolver. Ela sabe disso tudo, a gente fala por preocupação.
De tarde, eu planejava subir a Serra de Tunuí junto com Antônio. Mas de repente Elza nos convidou para ir à roça. Ela já estava saindo, ia até lá só para levar um fardo de manivas. Fomos. É a mesma roça que ela da outra vez me mostrou quando estava kewedanka rhoa, grávida de Raquel, e quando a Eliane ainda a ajudava no plantio, finalizando o ensino médio, e o seu desejo de sair para estudar era só um sonho tímido. (Daqui a pouco ela já se forma em Biologia.)
A roça fica na margem oposta do Içana, descendo com canoa a remo por cerca de 10 minutos. Andar de canoa pequena sempre me deixa feliz. Entrando na roça, comi biribás muito doces, sem conta, que Joelito colhia pra mim a pedido da mulher. Guardei as sementes de novo. Aquela árvore que plantei dos biribás de 2012 desta mesma roça já deve estar quase grande, ficou de presente para os novos moradores da minha antiga casa.
Ao centro da área cultivada, há um terreninho mais elevado. Dali a gente enxerga, em todas as direções, os pés de mandioca novos ou já altos, a perder de vista, pontuados pelas copas das árvores frutíferas com suas cores e gestos próprios, e o chão com muitos resquícios dos grandes troncos queimados, aquela beleza indomada e exuberante formada pelas técnicas peculiares de coivara e consórcio do alto rio Negro.
Este sistema agrícola milenar foi criado e mantido por gerações e gerações de mulheres rionegrinas. Recentemente, foi tombado como patrimônio imaterial brasileiro. São os saberes e técnicas que asseguraram a sobrevivência destes povos até hoje, alcançando altíssima eficiência e diversidade nutricional mesmo no solo ácido que aqui predomina.
Não vi nenhum jardim de pimentas. Será que tem na outra roça? Elza lamentou que não tinha nenhum pé de macaxeira ali, para me dar umas manivas. Eu lhe contei que já colhi, comi e replantei as que ela me deu da outra vez, mas também ficaram no quintal da casa antiga. Ela só vai pegar talos de macaxeira quando for de novo à sua comunidade de nascimento, Vista Alegre. Disse que a roça de Martinha fica bem perto, acima. Além de vizinhas de casa (e concunhadas), elas são vizinhas de roça. Será que elas também trocam manivas, ramas e sementes entre si?
Demos uma volta elaborada pelo perímetro cultivado, desviando das folhagens na altura do rosto, às vezes trepando em abiuzeiros baixos para colher as poucas frutinhas amarelas adiantadas na temporada. Só a dona da roça divisava de longe os abiús, enquanto se comunicava à distância com Joelito por meio de assobios, interjeições agudas, “uuu!”, e comandos em voz muito, muito baixa (colhe ingá, pega lenha, traz biribá, supus) — que ele, embora já bem longe do nosso campo de visão, não tinha dificuldade em ouvir e obedecer.
Depois da acelerada caminhada, chegamos de volta à prainha pequena onde a canoa estava amarrada, e sentamos para esperar. Elza calma e plácida, aguardando o esposo, fazendo chibé para nós, se refrescando na água fria, puxando conversa. Após um longo silêncio, todo mundo olhando para o rio verde-escuro, eu, que não aguento direito essas intensidades, lhe disse: Eu acho sua região tão bonita, que às vezes eu choro só de olhar.
Ela falou: É. Eu também choro. Uma íntima e empática concordância generalista. Voltamos, carregando um feixe de ingá, dois biribás e um montão de abiú.
À noite, conversamos mais um pouco com o Joelito, e comemos mujeca na casa deles.
* Ceunir-Feusp é a sigla do Centro Universitário de Investigações em Inovação, Mudança e Reforma Educacional, grupo de pesquisa sediado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde sou articuladora da Linha de Pesquisa com Escolas Indígenas.
Aliás, você sabia?
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