Os nomes são fictícios. Mas meu relato é verdade, está no arquivo de campo. Escutei a história do Gomes num encontro indígena em 2012, descansando nas redes depois da janta, numa aldeia da calha do Içana, em São Gabriel da Cachoeira (AM), o "município mais indígena do Brasil".
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Vou contar da vez que eu comi uma onça. Se fosse o contrário, nem era notícia: isso eu aprendi na faculdade de jornalismo. É normal quando um cachorro morde alguém; só é notícia quando alguém morde o cachorro. Mas eu não mordi essa onça sozinha. No meio das pessoas que comeram ela comigo, estava um cinegrafista chamado Gomes: nós éramos as únicas pessoas "brancas" presentes ali.
Eu tinha acabado de chegar à comunidade de Canadá, no rio Ayari, o grande afluente do Içana; e estava hospedada junto com as lideranças visitantes, redes atadas nas vigas do telhado, no prédio da estimada Escola Eeno Hiepole - que ainda se chamava Escola Tiradentes. Era agosto de 2012. E eu estava conversando com esse colega cinegrafista.
Valdo Gomes me contou que nasceu em Manaus e que, desde menino, gosta muito de tirar fotos. Com 12 anos já era DJ. Adolescente, começou a trabalhar com filmagens e edição de vídeos. Mas, quando ficou moço, foi ser soldado no Exército.
Passou alguns anos como militar. Foi quando veio servir aqui em São Gabriel. Um dia, em plena missão real (em oposição às missões de treinamento), um vulto passou na sua frente e ele ficou tenso. Gritou, Identifique-se! A pessoa não respondeu. Identifique-se! O vulto se mexeu só um pouquinho. Ele deu o golpe de segurança (aquele que destrava a arma e anuncia o tiro) e gritou mais uma vez: Identifique-se, desgraçado, ou você vai morrer agora! A pessoa na sua frente ajoelhou-se e pediu, Por favor não faça isso, Gomes, cê tá maluco, sou eu. Quem falava era seu oficial.
Começou a correr o boato. O Gomes é doido, quase matou o oficial. Cuidado com esse aí. "Se eu tava em missão real, e eu grito pro cara se identificar, e o cara fica parado na minha frente! Pô!” Abriu-se lá um inquérito, e o Gomes foi expulso do Exército.
Mas ele havia servido junto com o subtenente Edmo Cerqueira, que era também radialista; e que tinha ensinado os colegas de tropa a fazer locução de futebol. Assim, resolveu ficar em São Gabriel e foi trabalhar na rádio. Conheceu Guiomar Morais, índia tukano e locutora do programa da tarde. Namoraram. Ela engravidou. Casaram.
Quando Guiomar soube que o filho ia nascer, era 1h da madrugada. Gomes sentiu uns tapinhas na perna e acordou contrariado, Que é que foi. Ela só fez uma cara brava. Ele voltou a dormir. Sentiu de novo os tapas na perna e acordou, Que é! Aí entendeu. Caramba, o moleque vai nascer.
Foi caminhando com a esposa até o Hospital de Guarnição, perto de casa. As contrações estavam fortes. Guiomar apertava sua mão, e ele pensava que os ossos iam quebrar. A doutora que a acompanhava lhe disse, Gomes, vai buscar a mãe dela. Você aí do lado não tá ajudando.
O moleque nasceu às 6h de parto normal. “Agora não sei, isso é um parto difícil? Cinco horas de sofrimento?” É até rápido, respondo, mas não é fácil.
Hoje o moleque tem quatro anos e vai à creche. Tem os olhos puxadinhos: é japonesinho, diz o pai. Igual aos olhos da mãe. Gomes, você acha que o seu filho é índio ou é branco? Pensou um pouquinho. É misturado, né. E ele tem nome indígena, recebeu benzimento quando nasceu? Recebeu. De quem? Do bisavô dele, avô da minha mulher. Como é esse nome? Não sei. Minha mulher deve saber. Vou perguntar.
De locutor, Gomes virou cinegrafista e editor de vídeo. Trabalhou em repartições públicas, depois ficou desempregado. Mas uma associação indígena o chamou para filmar suas atividades. Ele recebeu um equipamento de última geração – a ilha de edição e a câmera digital do modelo tal, que seu maior sonho era ter uma dessas.
Guiomar não está tão satisfeita. Acha que ele viaja demais. Já lhe disse que tem vontade de ir embora de casa, porque ele ganha pouco. Houve um dia em que ele voltava do trabalho e, de dentro do táxi lotação, viu a mulher bebendo num bar com dois colegas homens. Foi lá ver o que estava acontecendo. Ela disse: Tou bebendo porque tu viaja demais.
Então ele me confessou: "Naquele dia eu fiz besteira". Fiquei um pouco nervosa. Mas eis o que ele fez. Primeiro, passou na casa da sogra para ver se estava tudo bem com o filho, que dormia lá (Cadê Guiomar, a mãe dela perguntou; Pô, não sei, tá lá bebendo). Depois, pegou um dinheirinho que tinha acabado de receber, e gastou tudo em cerveja e cachaça no mercado. E finalmente foi pra casa do pai dele, e ali ficou, enchendo a cara.
No dia seguinte, perguntou à mulher se ela estava tendo um caso. Ela jurou que não. Ele me perguntou o que eu achava, se ela estava dizendo a verdade. Eu achava que sim.
Gomes não quer deixar o filho, e gosta muito da mulher. E do trabalho. E de participar dos eventos indígenas. Ontem à tarde, durante as apresentações na abertura do encontro, ele foi lá em cima no palco, pegou o microfone, e falou. Que era o Gomes, do setor de comunicação. Que vinha registrar o trabalho das lideranças. Que estava muito feliz de ter chegado aqui, na aldeia de Canadá. Que ainda não era o Canadá lá da América do Norte, mas um dia se deus quisesse ele chegava lá também. Tinha telefonado à mãe: Vou pra Canadá. Mas tu nem tem passaporte, meu filho! Seu maior sonho é aprender inglês e viajar.
Terminou sua apresentação dizendo que no jantar queria comer quinhapira de onça. Na hora, achei indelicado. Acabava de aprender que dzaawi é como se diz onça em baniwa, e que uma das fratrias aqui desse povo é a dos Dzaawinai, os filhos da onça. Estava achando tudo tão bonito, essa onçagem toda. Qual é a desse Gomes?
Mas, ao fim dos trabalhos de ontem (quando a gente ainda não tinha conversado de tudo isto), ele me chamou para ver uma coisa. Me mostrou a filmagem de uma onça-pintada macho que havia sido morta naquela manhã, antes de eu chegar. Um rapaz da comunidade estava andando numa picada do mato, quando a onça pulou na frente dele, e a situação era de matar ou morrer, e ele matou: pôs nas costas e trouxe pra casa.
Olhei boquiaberta, pelo pequeno visor da filmadora, o corpo daquele bicho ainda enorme e imponente, mas já molenga no chão. Meia dúzia de homens jovens mexiam na onça e riam, com destreza de caçadores e com espanto de presa escapada. O Gomes disse que dava medo mexer, porque o corpo dela fez barulho, roncou feio, mesmo morto. Na próxima cena, ele mesmo segura a onça pelo sovaco esquerdo, balança sua mãozona mole, e dá tchauzinho para a câmera. Ficou filmado o honroso bye-bye de mais um jaguaretê.
Engolindo um sentimento meio assombrado e meio triste, resolvi achar incrível. Perguntei cadê a onça. Ele disse: Essa onça, agora, tá cozinhando.
Fomos lá ver. Num quintal, o couro estava estendido sobre uma grande mesa de madeira, esticado com pregos, pelagem escondida pra baixo, gordura à mostra, esperando pra secar no sol. Deve dar uns R$ 2 mil, o Gomes foi informando. Uma das patas da direita, inteira até o ombro, estava sendo moqueada numa cozinha ao lado, junto com os peixes: um braço imenso sobre o moquém, a mão maior que a da gente, toda nua de seu couro.
As duas presas de cima, o Gomes tinha comprado do caçador por cem reais. E o que você vai fazer com elas? Vou fazer um colar pra mim. Mas agora eu quero é comer a carne dela. Meu tio disse que é parecida com carne de anta. E o couro, o general deve comprar. Que general? O general, ele adora as coisas da selva, ele tem um monte. De onde você conhece esse general, moço? Ah, eu servi o Exército muitos anos. Mas eu fui expulso, porque eu quase matei um oficial.
Comemos mais tarde a nossa parte da onça moqueada, na janta coletiva, junto com todos da comunidade.
Aliás, você sabia?
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